quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Na fogueira das superficialidades queimam vaidades fermentadas por egos distorcidos, ids inconformados e alteregos sem adjetivo.

Minha avó tinha olhos cinzas. Nunca vi olhos iguais, não era só a cor, eram os olhos. Indecifráveis. Nunca soube ao certo o que ia por dentro da mente dela. Tão afastada da minha por uma geração e ao mesmo tempo tão perto. Minha avó foi a mãe que tive. Cresci ouvindo suas canções. “Vento que balança as palhas do coqueiro.” “Meu amor, esse teu corpo parece, do jeito que ele me esquece, um amendoim torradinho.” “Ontem alguém pôs a rodar um disco de Gardel no apartamento junto ao meu, que tristeza meu deu.” “Babaluuu.” “ Quando vinvim contou, corri pra ver você, atrás da serra o sol tava pra se esconder, quando você partiu eu não esqueço mais, meu coração amor, partiu atrás.”
Ela partiu, eu não esqueço. Confesso que gostaria de ter desfrutado mais de sua companhia, de ter bebido mais da fonte de sabedoria que ela era. Gostaria de ter ouvido mais canções na voz dela.
Minha avó não sabia ler, mas tinha vontade de aprender. Ela gostava de rezar e sabia muitas orações. Eu lia, ela ouvia e decorava. Nunca decorei nenhuma. Já madura foi alfabetizada, lia e escrevia, mas essa não era sua maior inclinação. Ela gostava dos filhos, dos netos, da casa e todos juntos em volta dela e nisso era boa.
Naqueles olhos queimavam lâmpadas de sabedoria. Uma sabedoria quase impossível face às diversidades vividas na ordinária, porém singular, estrada que ela trilhou, muito pela força das circunstâncias e muito mais pela força de caráter que tinha. A vida de todos nós é muito diferente e muito igual. Os sentimentos humanos são finitos, a forma de sentir é que muda. Quem nunca se identificou com um relato?
Minha avó vivia bem. Vida abastada, marido, filhos, boa casa, empregados. O marido a traiu com uma vizinha. Naquele tempo ela deveria se resignar. Era o que a sociedade esperava dela. Aceitar e continuar vivendo sua vida abastada e aparentemente feliz. Ela não aceitou. Mudou de cidade, com umas poucas roupas e os filhos, sete ao todo. Vendia marmitas aos candangos que estavam construindo Brasília. Colocou os filhos na Universidade Federal e formou todos que quiseram. Sua sabedoria nunca os forçou a nada, mas ensinou-os a escolher. E quando escolhiam errado ela estava presente para socorrê-los. Não está mais. Faz falta, mesmo depois de ter criado e encaminhado os filhos na vida, como a sociedade espera que seja. A sociedade, de ids inconformados, que atira pedra em quem se recusa a aceitar uma indignidade, abandona quase tudo e parte para começar do zero, é a mesma, de alteregos desqualificados, que aplaude quem consegue o feito.
Ela só voltou à cidade outrora deixada para enterrar meu avô. A mulher que ele escolheu não tinha forças, nem recursos. Não quis nada do que ele deixou, os filhos tampouco, vivem todos muito bem.
Minha avó, sem saber, me ensinou a buscar além da superfície, buscar o que não se pode ver a olho nu. Não sei como, mas ela me ajudou a equilibrar meus eus, meu ego, meu id, meu alterego. Na ausência dela, estão todos aqui quando preciso.
Vivo no mundo das coisas rasas desfiladas como se profundas fossem. Da filosofia de boteco alardeada como último paradigma no mundo da ciência. “Três bichos não sentem frio: urso polar, pingüim e piriguete” Profundo. ... Engraçado também. Mas totalmente equivocado. Ursos polares e pingüins sentem frio e infelizmente, aqueles estão em extinção e, dentre esses, algumas espécies também. O terceiro bicho nem bicho é e, também infelizmente, não está em extinção e, pior e avassalador, tivesse que escolher entre a indignidade e o inconformismo não teria dúvida, aliás já escolheu há tempos.
O sentimento de repulsa que tenho pelos seres indignos, óbvios, vaidosos e superficiais é inversamente proporcional à admiração que tenho pela minha avó. Seu nome? Antônia. O que significa? Amiga inestimável..

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